PRELÚDIO
Angelita Beviláqua era já uma mulher casadoira com os seus dezessete anos, no vilarejo de Anchiano, da província de Florença, Itália, segundo os costumes do século XIV. Era uma das mais graciosas camponesas daquele simples vilarejo, com os seus estonteantes olhos azuis claros como uma manhã de inocência e suas madeixas loiras que o tempo não levara junto com sua infância. Seu riso era como a primavera chegando com o seu cálido hálito e sua paixão; suas maçãs do rosto eram tão coradas que quem não a conhecesse juraria que ela acabara de correr ou estava ruborizada de vergonha. Seu corpo adulto já despertava atenção de todos os solteiros (e casados) daquela vila. Seus pais, já conscientes disto, já procuravam um pretendente para a sua filha mais nova. E, dada a sua beleza e graça, podiam almejar um candidato mais afortunado que os camponeses daquela região.
E uma noite, Adolfo Warren apareceu, batendo na porta. A graciosa Angelita atendeu a porta, e seus olhos se arregalaram ante a beleza do estranho, com os traços de um germânico, e do terror que ele lhe inspirava. Ainda sobrou perspicácia suficiente para dar uma olhada nas roupas dele e no que havia atrás dele: era provavelmente um comerciante rico, e que tinha uma carruagem de dois cavalos, com um pálido condutor que olhava furtivamente para o seu senhor, amedrontado. Boquiaberta, ela pisca os olhos.
-- Boa noite, senhorita. Não tenho um lugar decente para hospedar, e sua casa é a mais bonitinha que achei por aqui. Posso entrar?
A rudeza daquele estranho teria feito a garota devolver uma resposta atrevida, mas ela se limitou ao:
-- Papá! Mamá! Tem um homem estranho aqui!
O jantar foi, no mínimo, estranho. Adolfo não parava de olhar para a jovem, como se estivesse avaliando uma cabra ou vaca. Ela lançava olhares de represália ao estranho, que respondia com um sorriso presunçoso, o que a deixava mais irritada ainda. Os pais nada diziam, se limitavam a olhar para o prato. Terminada a silenciosa refeição, o pai mandou que ela fosse ao seu quarto. Satisfeita por se livrar daqueles olhares perturbadores, Angelita se retira. Felizmente (ou infelizmente, dependendo da situação), a casa era pequena, e as portas finas. Assim que fechou a porta e apagou a luz da vela, a garota colou o ouvido na porta, e ficou escutando...
Uma voz de timbre grave, e estranhamente agradável do estranho, disse:
-- Bela filha que vocês têm; vocês a criaram muito bem!A voz um tanto rouca de seu pai respondeu:
-- Obrigado, a gente fez o melhor que pôde...
-- Então, ela já está em idade para se casar?
Uma cadeira se remexeu. Provavelmente era sua mãe se mexendo inquieta. Sua voz clara e um tanto preocupada disse:
-- Sim, Angelita está pronta para casar; ela já sabe cumprir todas as obrigações que uma casa exige...
-- Hum, interessante. – a voz agradável do estranho estava pensativa.
-- Bom, nós queríamos dar estudos à nossa filha caçula; nossos filhos mais velhos, já homens, não precisam, uma vez que sabem lidar com a terra. Mas a nossa anjinha tem as mãos tão delicadas, e sua beleza foi feita para algo mais que a dura vida de uma camponesa. Então, se o senhor quiser... – a voz do pai deu uma pausa, indecisa – Se o senhor desejar, poderia tomá-la por esposa, e dar-lhe algum estudo...
A jovem se contorcia para não protestar com fúria ante tais propostas. Não queria ir com aquele estranho!
-- Hum... – a voz melodiosa estava fingindo indecisão.
”NÃO! Por favor, pai, mãe, não façam isto...”
-- Está bem. Eu a tomarei por protegida e a levarei para Florença, pagarei algumas aulas de escrita e piano, e se ela me agradar... Cuidarei muito bem dela.
-- Por favor, se ela não te agradar, devolva-a a nós... Com honra. – a voz de sua mãe tinha notas de preocupação.
-- Eu a devolverei inteira, se é o que a senhora quer – a voz do estranho estava enigmática.
O silêncio envolvera a casinha. Cadeiras se arrastaram, com murmúrios de polidez e sobre onde ele iria dormir. O estranho dissera que não se importava em ficar naquela sala de visitas mesmo; não se importava muito. Horas depois, ele partia duas horas antes do amanhecer. Angelita Beviláqua tinha os olhos vermelhos, ardendo; sentia-se muito cansada e magoada, mas mesmo daquele jeito, se recusava a entregar ao sono dos inocentes e justos. Seus ouvidos vigiavam os sons da casa. Assim que ouviu a carruagem partir, seu cérebro exausto enfim abandonou a vigilância que seus instintos impuseram sobre ela com relação ao estranho, e ela tombou na cama.
Florença se apresentava em todo o seu esplendor, graças à Renascença do comércio e das cidades, na janelinha da carruagem que transportava uma amuada e entristecida donzela de cachos de ouro. A mansão de seu tutor era suntuosa, com um encantador jardim à frente da casa e muros com cercas. A jovem entrou na mansão, e logo foi apresentada ao quarto, sem interesse por nada.
Somente à noite ela viu Adolfo Warren, em seu jantar. Ele não tocava na comida; estava ocupado em observar pensativo os movimentos lacônicos da Angelita.
-- Coma mais, querida, nunca se tem a garantia de uma próxima refeição assim!
Recebeu um feroz olhar de soslaio da donzela, e soltou uma risada.
E assim foi, durante o dia ela aprendia etiquetas, equitação, piano e letras, e somente na hora do jantar ela via o seu tutor. Logo ela recuperava sua alegria exuberante de antes - apesar dos protestos de sua professora de etiquetas - e brincava com todos os empregados, ria, alegrava a casa antes melancólica e silenciosa. Os jantares agora eram eventos animados, em que Angelita debatia com o Warren sobre tudo que se podia imaginar. Adolfo a admirava pela sua inteligência e presença de espírito; e se revelava cada vez mais encantador, humano até, apesar dos modos rudes com que tratava quando algo não lhe agradava.
O verão dava lugar ao outono, com suas folhas douradas e ventos frios. Um dia, ousou perguntar a Adolfo:
-- Por que nunca o vejo de dia, meu tutor?
-- Quer a verdade, ou a mentira que conto a todos?
-- Você sabe o que prefiro.
-- A verdade é que sou um vampiro, e você vai ser apresentada à minha senhora.
O copo que estava na mão da donzela escapuliu e derramou vinho no prato dela.
-- Ah, me desculpe, eu...
-- Tudo bem – a voz ríspida do tutor soou pela sala. – Quero que você suba para os seus aposentos, vista seu melhor vestido, faça seu mais belo penteado, vista a mais cara jóia e seja um verdadeiro diamante da sociedade. Vá!
A trêmula Angelita estava na sala de estar, rezando para não derrubar o chá que estava em sua mão. A senhora a que Warren se referia era uma mulher esplendorosa, de longos e escorridos cabelos negros, olhos escuros e brilhantes como a noite, e com uma pele clara como marfim. Sua majestade a aterrorizava, e instintivamente, sabia que ela era antiga e muito, muito poderosa. Jade Liro a avaliava com os seus olhos imortais:
-- Parece-me que escolhestes muito bem, Adolfo. É uma jovem cheia de vida, com uma inteligência admirável e talento para cativar todos a seu redor. Pena que este rubor encantador que tens em sua face vá se esvair com o doce Abraço.
O sorriso que ela deu produziu arrepios nas costas de Angelita. Adolfo a olhava orgulhoso, e um tanto paternal.
-- Então, minha senhora, tenho sua permissão para Abraçá-la?
--Tem sim, minha cria; creio que ela será útil à sociedade vampírica. Bem, devo me retirar por ora; foi um prazer conhecer tua primeira e futura criança. Ainda se lembra claramente das instruções que lhe dei, Adolfo?
-- Perfeitamente, senhora. Preparei tudo. – a voz era submissa. Angelita estava intrigada; nunca vira o seu tutor tão humilde!
A terrível vampira se retirara. Angelita olhava apavorada para o seu tutor. Não sabia se implorava por misericórdia e proteção ou se corria dele. Firme, seu tutor a conduziu até o seu aposento, a fez se deitar na cama. Ela agora começara a gritar e a se debater. Ele dizia:
-- Calma, querida, não vai doer nada, deixe-me...
A resistência da garota agora despertava nele sentimentos lascivos há muito tempo enterrados. Com um suspiro, a abraçou e a acariciou, paciente, despertando nela as mesmas emoções que sentia... Os beijos dele agora a enlouqueciam... E uma dor no pescoço quase a fez gritar. Então, entrou em uma espécie de êxtase, em uma espiral de sensações agradáveis, e ficava cada vez mais leve... Abriu os olhos e viu um anjo a seu lado, estendendo a mão. Então compreendeu o que estava acontecendo e se apavorou. Sentiu as gotas em seus lábios, tão quentes, tão cheias de vida... E sorveu tudo. Não queria morrer, era tão jovem! O Anjo abaixou as asas com tristeza, fez um sinal de cruz, como se a abençoasse, e se desvaneceu em uma névoa de luz.
Acordou sobressaltada, furiosa, enlouquecida pela Fome que roia suas estranhas. Agora rugia para o seu espantado tutor:
“QUERO SANGUE! AGORA! GRRRRRRR!”
Quebrara muitos vasos, algumas mesas e arrancara os pilares de sua cama. A muito custo seu senhor a segurou e a carregou para o aposento ao lado. Havia um homem no auge de seus 30 anos, adormecido... Era belo com suas madeixas ruivas, mas Angelita Beviláqua não prestava mais atenção na beleza. E sim em suas veias pulsantes, grossas, cheias de ssssaaangueee, chamando por ela...
Acordou na noite seguinte com o quarto todo ensangüentado, e ela própria estava imunda com pedaços de tripas em suas mãos. O grito de dor percorreu a mansão toda. Seu senhor viera correndo, a acolhera em seus braços e dizia que infelizmente seria assim, teria que aprender a controlar a Besta, e ele estaria lá para ajudá-la. Ela se olhou no espelho que havia ao lado. Lágrimas de sangue rolavam, sujando ainda mais seu rosto que adquirira uma beleza atemporal. Adolfo tentou limpar as faces com um lenço limpo, levantou seu queitxo com uma mão para examiná-la melhor e abriu um sorriso orgulhoso.
-- Minha querida, você está mais bela ainda! Seu rubor, por milagre, se manteve em seu rosto; estou muito feliz por ter você em minha solitária vida eterna...
Beviláqua não mais andava durante o dia. Não mais alegrava a mansão com seus risos.
Agora ela corria com o seu senhor, caçava, aprendia tudo que era necessário sobre mundo dos vampiros. Tornara-se uma criatura rancorosa, e não conseguia evitar destilar seu veneno através de palavras contra o seu senhor. O senhor, mesmo sendo Brujah, um clã de vampiros fortes e impetuosos, era paciente com a sua nova companheira, mas às vezes sua cria extrapolava e ele então dava tapas nela, para “aprender a se comportar com ele”.
Em uma noite de inverno, no aposento de Warren, após uma discussão acalorada sobre a última caçada, em que ela se recusara a sacrificar uma criança que Adolfo trouxera para saciar a sede de sua cria, ela conseguira enfurecer seu senhor.
-- Não vou matar uma criança! Não vou deixar o senhor fazer isso! Ela não tem culpa por eu ser quem eu sou! E sim, VOCÊ é o culpado! VOCÊ quem me transformou neste monstro! E não vou deixar você decidir quem eu devo comer e quem não devo! SEU MONSTRO!
Adolfo Warren olhava para a sua criança ensangüentada... Ele tinha deixado a Besta fluir, e
por pouco não a destruíra. Agora a abraçava, arrependido:
-- Desculpa, minha querida, você disse a verdade, você era inocente... Fui egoísta em tirar sua vida humana e transformá-la em minha companheira da noite eterna. Agora estás tão machucada... – Lágrimas de sangue rolavam pelo belo rosto germânico.
-- T-t-tudo bem, tut-tor... Eu te-te perd-dôo... Não de-veria ter m-me torna-dd-do tão amar-ga... – Tudo nela doía, nunca apanhara tanto...
Com um baixo uivo de dor, Warren disse:
-- Calma, querida, agora poupe seus esforços. Irei te enterrá-la com todas as pompas, e você dormirá até que se sinta recuperada. Estarei sempre por perto de você...
Como o seu senhor dissera, Angelita Beviláqua agora dormia em um caixão luxuoso com 5 metros de terra em cima. Estava tão confortável, se sentia tão bem em sua escuridão, que resolvera dormir mais...
E só se levantou em 1950.
Seu senhor estava lá quando ela ressurgiu da terra. Ele a abraçou, e a abrigou em seu apartamento por duas noites, instruindo-a sobre o tempo que se passara e o que estava rolando em seu mundo agora:
-- Minha querida, o mundo mudou tanto! Olhe só, vendo esse canaille se agitando deste jeito, não duvido que um dia tenhamos máquinas voadoras!
Quando ela interrogou sobre a Camarilla, ele parecia que tinha fogo em suas veias, tal impetuosidade na torrente de palavras que vociferava sobre ela:
-- A Camarilla é uma BOSTA! Aqueles bastardos pensam que são o quê, deuses?! Desde quando eles tomam seus bens só porque você deixou sem querer uma carne aí, e os outros do rebanho ficaram todos agitados quando viram a bagunça que fez? Desde quando?! Eu tinha acumulado riquezas, mais ainda, eu as acumulei tanto para você, minha querida! Gananciosos! Bando de velhacos hipócritas filhos duma ... – e continuava, desta vez usando palavras antigas, em germano, e nem um pouco polidas.
Quando se acalmou, disse para tomar muito cuidado naqueles dias, apesar dos anos serem “dourados” para os homens. A televisão a deixava assombrada, e naquela hora, passava a final da Copa do Mundo de futebol, com a vergonhosa derrota do Brasil em plena Maracanã. Então Adolfo disse que era hora de ele repousar:
-- Meu anjo, os séculos que agora pesam sobre meus ombros estão me cobrando os tributos; só me mantive acordado esse tempo todo para receber você quando acordasse. Você dormiu tanto, e vejo o resultado deste sono reparador. – Passa com carinho sua mão nas faces rubras de Ângela - Estás mais bela que nunca. É, querida, eu esperei. De todas as crias que tive e cuidei, você, a primeira, mesmo estando tão pouco tempo ao meu lado, é a minha preferida... Pode-se dizer que um vampiro pode amar.
Solta risadas ante o rosto perplexo e emocionado de sua companheira:
-- Não deixe a Camarilla nem o Sabá saberem disto, é capaz de nos esfolarem vivos!
Deixou para ela suas reduzidas riquezas, que eram aquele apartamento, uma lambreta ainda bem-conservada e algumas garrafas de sangue, e partiu.
Decidida a saber da verdade, por anos ela viu de perto o covil de víboras que se chamava Camarilla, que tinha despojado seu senhor de riquezas por considerá-lo “um tanto subversivo, que caça com descuido e não se comporta como um cavalheiro” Então resolveu jogar o jogo deles, sendo obediente à Camarilla e servindo secretamente ao recente Sabá...